Lacan e a antifilosofia

A montagem antifilosófica de Lacan que é parte constitutiva do dispositivo resulta em três enunciados negativos: não há verdade do real; não
há saber do real; não há saber da verdade; como diz Lacan as operações da filosofia são todas dependentes, qualquer que seja a orientação filosófica considerada ou tese segundo a qual é possível ter um saber da verdade do real. A maneira como se descobre a função do real no saber é suspensa no ato analítico. O ato analítico é um ato de que mesmos os psicanalistas sentem horror, em sustentar e suportar, tal sua gravidade ou teor de gravame (dívida simbólica). O que importa realmente para Lacan é ficar frente a frente ou fazer face ao ato analítico. Pode-se afirmar que a finalidade do conjunto de seu ensino foi a de dar aos analistas uma chance de fazer face ao seu ato.
Esse conjunto de atividades inclui toda a construção teórica, toda a sutileza da análise, toda a revisão conceitual, toda a topologia, toda a teoria de instância analítica, tudo que se pode dizer do ato mesmo e tudo isto tem uma função:
dar chance, dar um pouco mais de chance, de se fazer face ao ato.
A função do real no saber não pode ser descoberta por um saber deste saber, é preciso que seja a partir do ato que se descubra. Esse ato não é atestado a não ser como um dispositivo de saber na experiência do corte. É
preciso que se estabeleça um dispositivo de saber transmissível para que o
ato seja atestado, compreendendo que é do ato que depende que se descubra a função do real. Como todo saber integralmente transmissível é
matema, pode-se dizer que na antifilosofia lacaniana, tudo foi suspenso, em última instância, face à correlação enigmática entre ato e matema. Dessa forma se remonta de modo antifilosófico o terceto verdade, saber, real para se excluir a tentação hermenêutica e dar aos analistas uma pequena chance de fazer face ao seu ato.
O que é o passe como uma forma mais além da psicanálise? Lacan
nega que se trate de um mais além da psicanálise, apesar do passe ser um
suplemento da experiência analítica. Ao adotar a interlocução entre psicanálise e ciência, Lacan se entusiasmou em elaborar de forma simétrica o começo e o final da cura analítica. Ninguém ainda havia pensado em estabelecer uma correlação entre a entrada e o final. Os analistas de um
modo geral estavam mais voltados para o estudo da instituição da
transferência e até pensaram ser possível estabelecer um padrão a partir de uma transferência inicial, da entrada em análise, da transferência como é
estabelecida na borda do processo que ao final da análise era concebida
como uma dispersão e em Freud era concebida como uma condensação
(rochedo da castração) como um obstáculo à conclusão. Lacan, pelo
contrário, propôs uma fórmula de enquadre que permitiria definir pela lógica o que é um sujeito analisado.
No entanto, a partir de sua “Proposição de 9 de outubro sobre o
psicanalista da Escola” ele se viu encorajado a desenvolver a ideia de que os analistas não estavam à altura da análise e que inclusive não concordavam
com a descoberta freudiana. Lacan então apontava que mesmo entre os analistas há uma negação do que se revelou na experiência analítica enquanto analisantes. E conclui que aquilo que é recusado no simbólico (…) reaparece no real. Para ser causa de desejo do analisante, durante algum tempo o ideal do analista consistiu em se fechar ao seu próprio inconsciente,
que se ocultaria por trás de uma unidade chamada ortodoxa: o que resultou
na prática da contratransferência que convida o analista a tomar como ideal a
si mesmo enquanto sujeito do inconsciente. Já para Lacan a posição do analista é inversa e complementária à posição analisante, o que difere da prática da contratransferência. Essa diferença é mínima mas perturbadora
quando posta em prática. O desejo do analista se orienta pelo desejo de atravessar a aparência, seu retorno e por fim levar à queda esse índice subjetivo que chamamos significante mestre ou identificação.
A pergunta institucional de Lacan é de como inocular novamente o
desejo de saber, como voltar a colocar o analista em uma posição analisante
como sujeito suposto saber. A escola é a força capaz de voltar a colocar o analista em uma posição analisante em relação ao sujeito suposto saber, de
voltar a coloca-lo na relação com a ignorância. Para Lacan o contorno dessa
escola se caracteriza por uma insatisfação; é muito mais uma escola que quer saber, em uma posição histérica para vir a operar.
Em “O caminho do psicanalista” seminário de Éric Laurent de 1999, este debate o aspecto do espaço lógico e do espaço vazio e
o aspecto do mais um.
Laurent entende que o psicanalista deve aprofundar o lugar do mais um, especialmente na perspectiva do Seminário “As formações do inconsciente” que destaca um lugar que é êxtimo ao sistema da língua, que está fora deste e contudo dentro. Um lugar que autoriza novos sentidos que
se produzem cada vez que o efeito do chiste inscreve um uso inédito ou uma maneira nova de falar. Lacan mostra que não se tem que distribuir a questão
do sentido e do fora do sentido como o estatuto da subjetividade moderna do ser e do nada mas sim a partir da oposição entre o efeito de significação e o lugar do gozo. Há inscrição e marca de algo que é primário e que excede todas as significações em jogo.
O passe é um dispositivo que consiste em verificar se houve análise e se há analista. Não podemos dizer que se há analista, houve análise. Como a
Escola pode saber se houve análise de fato? Esta questão se sustenta na ideia de transmissibilidade. Há alguém que vai contar a um outro o que se
passou em uma cura analítica e aquele que escutou vai contar a um terceiro.
E sem entrar nos detalhes técnicos, percebe-se o princípio: alguém reconta a
um outro o que passou e algum outro o reconta a um terceiro e este diz que é isto, que houve análise. Para verificar uma transmissibilidade é preciso passar por duas etapas de transmissão. Os três tempos são sempre os
tempos da verificação científica, são os tempos que atestam a
transmissibilidade. Em se tratando da ciência, pode-se admitir que há uma figura de transmissibilidade integral, verificada, por exemplo, pelas diferentes
etapas de publicação de um artigo diante de um comitê editorial de uma revista científica que se preocupa em não publicar artigos que não tenham impacto significante sobre a comunidade científica. O passe por outro lado é uma confirmação empírica do caráter arquicientífico da concepção lacaniana
do ato. Somente houve análise se houve um ato analítico, uma vez que em todo pensamento do tipo antifilosófico se identifica a soberania do ato em última instância. O ato analítico é atestado como saber e não como verdade,
porque é o saber que tangencia a falta de sentido. O passe organiza a ausência, uma vez que no curso das transmissões sucessivas o protagonista
inicial desaparece. O julgamento, se é que se pode falar em julgamento, é julgado na ausência do interessado, na ausência daquele que passa o passe.
O analista não está na posição de um acusado. É mais… um voluntário! Mas até que ponto ele é um voluntário? Estar ausente é quase uma metáfora cênica daquilo que está em questão: a ausência de sentido, o ab-sentido ou
em outras palavras a ausência de sexo, o ab-sexo. É por isto que seria preciso julgar na ausência de alguém que esteve no acontecimento desta
ausência.
E a filosofia, o que tem a ver com o passe? Por que demos a esta
palestra o título Lacan e a antifilosofia? Porque a filosofia é aquilo que não se passa. Podemos dizer que o detrito de um passe, este sim, e somente este deva ser inteiramente filosófico.


30 de novembro de 2013 – Ivanisa Teitelroit Martins

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